Livro: "Regras do Jogo - Fundamentos do Design de Jogos'
Autores: Katie Salen, Eric Zimmerman
Editora: Blucher
Capítulo: "Interatividade" (pg. 73)
"A palavra 'interatividade' não é apenas dar escolha aos jogadores; ela define completamente a mídia do jogo." - Warren Spector, "RE:PLAY: Game Design + Game Culture"
Apresentando a interatividade
"Jogar implica interatividade: brincar com um jogo, um brinquedo, uma pessoa, uma ideia, significa interagir." (pg. 74)
"[...] jogar um jogo significa fazer escolhas em um sistema de jogo projetado a suportar ações e resultados de maneiras significativas. Cada ação resulta em uma mudança que afeta o sistema global. Esse processo de ação e resultado acontece porque os jogadores interagem com o sistema projetado do jogo." (pg. 74)
"Nos jogos, é a interação explícita do jogador que permite que o jogo avance. A partir da interatividade de escolher um caminho para selecionar um alvo de destruição para coletar estrelas mágicas, o jogador atua para iniciar e executar toda uma gama de ações explícitas. Em certo sentido, são esses momentos de ação explícita que definem o tom e a textura de uma experiência de jogo específica. Para entender essa qualidade em particular dos jogos - o elemento da interação - devemos entender mais completamente os termos evasivos 'interativo', 'interação' e 'interatividade'." (pg. 74)
Definição de interatividade
"Começamos com uma pergunta geral: O que é 'interação'? Eis algumas definições básicas do dicionário:
- interação: 1. ação intermediária; 2. ação ou influência mútua ou recíproca;
- interagir: agir sobre outro; agir reciprocamente;
- interativo: reciprocamente ativo; agir ou influenciar-se mutuamente; permitir um fluxo bidirecional de informações entre um dispositivo e um usuário, responder à entrada do usuário." (pg. 74)
"Em termos mais gerais, a interatividade simplesmente descreve uma relação ativa entre duas coisas. Para os nossos propósitos, entretanto, precisamos de uma definição um pouco mais rigorosa, que leve em conta a natureza particular dos jogos. Em vez de perguntar sobre a interatividade no abstrato, o que significa dizer que algo é 'interativo'? Mais especificamente, como a interatividade surge dentro de um sistema?" (pg. 74)
"O teórico das comunicações Stephen W. Littlejohn define interatividade assim: 'Parte integrante de um sistema é a noção de 'relacionamento''. [...] uma coisa é interativa quando há uma relação recíproca de algum tipo entre dois elementos de um sistema. [...] Além disso, as relações entre os elementos de um sistema são definidas através da interação." (pg. 74)
"Seguindo essa definição, a teórica da mídia digital e empresária Brenda Laurel traz o conceito de representação para uma compreensão do termo: '(...) uma coisa é interativa quando as pessoas podem participar como agentes em um contexto representacional. (Um agente é 'aquele que inicia ações')'. O modelo de Laurel enfatiza o componente interpretativo das experiências interativas, enquadrando um sistema interativo como um espaço representacional." (pg. 74)
"Em uma definição alternativa de interatividade, o teórico Andy Cameron baseia-se nessa dimensão interpretativa, enfatizando a ideia de intervenção direta. Em seu ensaio 'Dissimulações', Cameron afirma que
'Interatividade significa a capacidade de intervir de forma significativa na representação em si, não ler de forma diferente. Assim, a interatividade na música significaria a capacidade de mudar o som, a interatividade na pintura, de alterar as cores ou fazer marcas, a interatividade no cinema (...) a capacidade de mudar a maneira como o filme se desenvolve.'" (pg. 74)
"Cameron sugere uma conexão entre a interatividade e ação explícita, uma característica fundamental dos jogos e da interação significativa (meaningful play). Em certo sentido, são esses momentos de ação explícita que definem o tom e a textura de uma experiência de jogo específica." (pg. 75)
"A definição final vem do designer de jogos Chris Crawford, que define metaforicamente a interatividade em termos de uma conversa: 'Interatividade: um processo cíclico no qual dois atores alternadamente ouvem, pensam e falam. A qualidade da interação depende da qualidade de cada uma das subtarefas (ouvir, pensar e falar)'." (pg. 75)
"'Uma conversa, na sua forma mais simples, começa com duas pessoas, Joe e Fred. Joe diz alguma coisa para Fred. Neste ponto, a bola está no campo de Fred. Ele realiza três etapas a fim de adiar o fim da conversa:
Etapa Um. Fred ouve o que Joe tem a dizer. Ele gasta energia para prestar atenção às palavras de Joe. Ele reúne todas as palavras de Joe e monta-as em um todo coerente. Isso requer um esforço ativo por parte de Fred.
Etapa Dois. Fred pensa sobre o que Joe disse. Ele considera, contempla e cogita. Sua mente trabalha ativamente enquanto Fred desenvolve sua resposta para a afirmação de Joe.
Etapa Três. Fred responde a Joe. Ele forma seus pensamentos em palavras e os expressa.
Agora, a situação se inverte: a bola está no campo de Joe. Joe deve ouvir o que diz Fred; Joe deve pensar e desenvolver uma reação; em seguida, ele deve expressar sua reação a Fred. Esse processo forma um ciclo contínuo. Assim, uma conversa é um processo iterativo [de iteração, não interação] no qual cada participante, por sua vez, ouve, pensa e fala.'" (pg. 75)
"Cada uma dessas definições fornece seu próprio modo crítico de entendimento da interatividade: ocorre em um sistema, é relacional, permite a interação direta dentro de um contexto representacional e é iterativa. Mas nenhuma das definições descreve como e onde a interatividade pode ocorrer, e nenhuma aborda a relação entre estrutura e contexto, dois elementos-chave na construção do significado. Essas perguntas de 'como', 'onde' e 'por quem' são fundamentais para qualquer pessoa que tem o desafio de projetar interatividade." (pg. 75)
Um modelo de interatividade polivalente
"O modelo apresenta quatro modos de interatividade ou quatro diferentes níveis de engajamento que uma pessoa pode ter com um sistema interativo. As atividades mais 'interativas' incorporam alguns ou todos eles simultaneamente." (pg. 75)
"Modo 1. Interatividade cognitiva; ou a participação interpretativa.
Essa é a participação psicológica, emocional e intelectual entre uma pessoa e um sistema.
Modo 2. Interatividade funcional; ou a participação utilitária.
Incluem-se aqui: as interações estruturais e funcionais com os componentes materiais do sistema (reais ou virtuais).
Modo 3. Interatividade explícita; ou participação com as escolhas e os procedimentos definidos.
Essa é a 'interação' no sentido óbvio da palavra: participação clara, tal como clicar nos links não lineares de um romance em hipertexto [...]
Modo 4. Interatividade além do objeto; ou a participação na cultura do objeto.
Esta é a interação fora da experiência de um sistema projetado. Os exemplos mais claros vêm da cultura dos fãs, na qual os participantes constroem juntos realidades coletivas, utilizando os sistemas projetados como matéria-prima." (pg. 75)
"Para nossos propósitos, o Modo 3, a interatividade explícita, aproxima-se mais da definição do que queremos dizer quando falamos que os jogos são 'interativos'. Uma experiência torna-se verdadeiramente interativa no sentido da 'intervenção direta' de Cameron somente quando o participante faz escolhas que foram projetadas na estrutura real da experiência." (pg. 75)
"[...] Mesmo que concentremos no Modo 3, é importante lembrar que os outros três modos de interatividade também estão presentes quando os jogadores fazem escolhas explícitas. Por exemplo, escolher se dobrar ou não no pôquer representa um momento de interatividade explícita. Mas, ao mesmo tempo, a qualidade do material e o tamanho das cartas afetam a interatividade funcional; as imagens extravagantes nas cartas podem gerar uma interatividade cognitiva; e as noções sobre o que significa ser um hábil trapaceiro - ou talvez o ressentimento por ter sido derrotado na mesa de pôquer na semana passada - representam formas de participação cultural que se encontram fora dos limites do jogo específico sendo jogado." (pg. 76)
Mas trata-se de uma interação "projetada"?
"A interação tem muitas formas. Mas, para projetar a interatividade, é importante ser capaz de reconhecer quais formas de interatividade os designers criam. Como exemplo, compare as duas seguintes ações: alguém deixa cair uma maçã no chão e alguém rola dados em uma mesa de jogos. Embora ambos sejam exemplos de interação adequada, só o segundo ator, rolar dados, é uma forma de interação projetada." (pg. 76)
"Essa ação foi projetada? Primeiro, os dados, ao contrário da maçã, fazem parte de um sistema (um jogo) no qual a interação entre o jogador e os dados torna-se significativa através de um conjunto de regras que descrevem seu relacionamento. Essa relação, conforme definida pelas regras do jogo de dados Craps, descreve a conexão entre a ação e o resultado. [...] Em segundo lugar, a interação é situada em um contexto específico: um jogo. Lembre-se de que a interação significativa está ligada não apenas ao conceito da ação do jogador e ao resultado do sistema, mas também a um contexto particular no qual ocorre a ação." (pg. 76)
"A queda da maçã não atende aos critérios de base da interação: há uma relação recíproca entre os elementos do sistema (como, por exemplo, a mão da pessoa, a maçã e o chão). Mas trata-se de uma interação projetada? A interatividade está situada em um contexto específico? Temos alguma ideia sobre o fato de que soltar uma maçã pode 'significar' uma forma de interação entre uma pessoa e uma maçã? Temos um sentido da conexão entre a ação e o resultado?
Não. Tudo o que sabemos é que uma maçã caiu. O que está faltando nessa descrição é um contexto explicitamente determinado dentro do qual a queda da maçã ocorre. Se nós mudarmos um pouco o cenário adicionando um segundo participante e pedirmos aos dois para jogarem a maçã um para o outro, teremos uma situação de interação projetada. Se pedirmos aos dois jogadores de maçã para contarem o número de vezes seguidas em que eles pegaram a maçã antes de ela cair, adicionaremos um contexto ainda mais completo para a interação. A simples adição de uma regra que designa que os jogadores quantifiquem sua interação situa o simple ato de jogar e pegar em um sistema global. A cada elemento do sistema é atribuído um significado: lançar, pegar e deixar cair. Mesmo no mais simples dos contextos, o design cria significado." (pg. 76)
Interação e escolha
"A cuidadosa elaboração da experiência do jogador através de um sistema de interação é fundamental para o design de interações significativas. Mas o que torna uma experiência interativa 'significativa'? Argumentamos que, para criar exemplos de jogos significativos, a experiência tem que incorporar não apenas a interatividade explícita, mas escolhas significativas. Quando um jogador faz uma escolha em um jogo, o sistema responde de alguma forma. A relação entre a escolha do jogador e a resposta do sistema é uma maneira de caracterizar a profundidade e a qualidade da interação. Tal perspectiva da interatividade apoia a definição descritiva da interação significativa apresentada no Capítulo 3 deste volume." (pg. 77)
"Ao considerar o modo como as escolhas são incorporadas na atividade do jogo, vemos o design da escolha em dois níveis: micro e macro. O nível micro representa as pequenas escolhas, momento a momento, com as quais um jogador é confrontado durante um jogo. O nível macro de escolha representa a forma como essas microescolhas unem-se como uma cadeia para formar uma grande trajetória de experiência." (pg. 77)
"Tenha em mente que a 'escolha' não implica necessariamente uma escolha racional ou óbvia, como na seleção de uma ação em um menu. A escolha pode assumir muitas formas, desde uma ação intuitiva física (como um tiro de pistola no jogo Time Crises) até o lançamento aleatório de um dado." (pg. 77)
"Como esses exemplos demonstram, a tomada de decisão é um processo complexo multifacetado. Há uma transição suave entre os níveis micro e macro de tomada de decisão, que se manifestam de forma integrada para o jogador. Quando o resultado de cada ação é perceptível e integrado, a tomada de decisão leva a uma interação significativa (meaningful play). O designer de jogos Doug Church, em seu influente ensaio on-line 'Formal Abstract Design Tools', descreve a maneira como esses níveis de escolha transformaram-se em uma experiência de jogo completa." (pg. 78)
"Como Church assinala, os macroníveis da tomada de decisão incluem não só o que fazer no decorrer de um jogo, mas também se você quer ou não disputar um jogo, e contra quem. Se for derrotado em um jogo de luta que não tem uma interação clara e significativa, você nunca saberá por que perdeu e provavelmente não irá jogar novamente. Por outro lado, se sabe por que seu oponente é melhor, sua derrota é significativa, pois o ajuda a avaliar suas próprias habilidades, lhe dá ideias de como melhorar e estimula sua interação geral com o jogo." (pg. 78)
Moléculas da escolha
"A capacidade dos jogos para 'representar a ação da qual os jogadores participam' constitui a base do nosso conceito de 'escolha'. Se considerarmos que cada escolha tem um resultado, então essa unidade ação > resultado é o veículo através do qual o significado de um jogo emerge." (pg. 78)
"[...] para compreender a natureza interativa do meaningful play (jogo ou interação significativa), vamos focalizar os tipos de significados que emergem a partir da interação do jogador. No núcleo do significado interativo está a unidade ação > resultado, a molécula a partir da qual as estruturas interativas maiores são construídas." (pg. 78)
"A ação na tela é afetada pela orquestração sutil desses cinco controles [do Asteroids]. Conforme o jogo avança, cada novo momento de escolha é uma resposta à situação na tela, que é o resultado de uma sequência anterior de unidades de ação > resultado. O fluxo contínuo que emerge é uma das razões pelas quais o Asteroids é tão divertido de jogar. Raramente, os jogadores têm consciência das centenas de escolhas que fazem a cada minuto quando se esquivam dos meteoritos e projéteis e travam uma batalha com as naves inimigas - eles percebem apenas seu entusiasmo e participação no jogo." (pg. 79)
Anatomia de uma escolha
"Embora o conceito de escolha possa parecer básico à primeira vista, a maneira como uma escolha é realmente construída é surpreendentemente complexa. Para dissecar nossa molécula de ação > resultado, temos de fazer as cinco perguntas a seguir. Juntas, elas descrevem a anatomia de uma escolha:
1. O que aconteceu antes de o jogador ter a escolha?
2. Como é a possibilidade de escolha transmitida para o jogador?
3. Como o jogador fez a escolha?
4. Qual é o resultado da escolha? Como isso afetará as futuras escolhas?
5. Como o resultado da escolha é transmitido para o jogador?" (pg. 79)
"Cada etapa é um evento que ocorre interna ou externamente ao jogo. Os eventos internos são relacionados ao tratamento sistêmico de escolha; os eventos externos estão relacionados à representação da escolha para o jogador. Essas duas categorias fazem uma distinção entre o momento da ação conforme tratado pelo estado interno do jogo e a manifestação dessa ação para o jogador." (pg. 80)
"Se seu jogo não conseguir produzir uma interação significativa, provavelmente é porque há uma quebra em algum lugar na cadeia de ação > resultado." (pg. 80)
"
1. O que aconteceu antes de o jogador ter a escolha? (evento interno)
2. Como é a possibilidade de escolha transmitida para o jogador? (evento externo)
3. Como o jogador fez a escolha? (evento interno)
4. Qual é o resultado da escolha? Como isso afetará as futuras escolhas? (evento interno)
5. Como o resultado da escolha é transmitido para o jogador? (evento externo)" (pg. 80)
"A anatomia de uma escolha não é uma ferramenta universal para corrigir problemas, mas pode ser especialmente útil nos casos em que o jogo está sendo interrompido por causa de uma falha no processo de tomada de decisão do jogador." (pg. 81)
"Criar um jogo significa projetar uma estrutura que terminará de formas complexas e imprevisíveis, um espaço de ação possível que os jogadores exploram uma vez que participam de seu jogo." (pg. 82)
"Mas, os designers do jogo não projetam diretamente o jogo. Eles só projetam as estruturas e os contextos nos quais o jogo ocorre, indiretamente moldando as ações dos jogadores." (pg. 82)
"Chamamos o espaço da ação futura implicada pelo design de um jogo de espaço de possibilidades. É o espaço de todas as ações possíveis que poderiam acontecer em um jogo, o espaço de todos os significados possíveis que podem surgir de um projeto de jogo. O conceito do espaço de possibilidades não só faz uma ponte entre a estrutura projetada e a experiência do jogador, mas também combina os conceitos-chave que apresentamos até agora. O espaço de possibilidades é projetado (é um espaço construído, um contexto), ele gera sentido (é o espaço de todos os possíveis significados), é um sistema (é um espaço implícito na forma como os elementos do sistema podem relacionar-se uns com os outros) e é interativo (é por meio do funcionamento do sistema interativo que o espaço é navegado e explorado.)" (pg. 82)
"O espaço de possibilidades entra em ação baseando-se nas regras e estruturas criadas pelo designer de jogos. O espaço de possibilidades é o campo de jogo onde os jogadores vão explorar, cooperar e competir, enquanto viajam pela experiência de brincar com seu jogo." (pg. 82)
"[...] como designer de jogos, você nunca pode criar diretamente o espaço possível de seu jogo. Você só pode construir indiretamente o espaço de possibilidades, por meio das regras que você projeta. O design de jogos é um ato de fé - nas suas regras, em seus jogadores, em seu próprio jogo. Seu jogo vai criar uma interação significativa (meaningful play)? Você nunca pode saber com certeza. Mas entender conceitos fundamentais - tais como design, sistemas e interatividade - pode ajudar a aproximá-lo de um resultado significativo." (pg. 83)